Viver e morrer

Há muitos anos li o depoimento de um docente recém diagnosticado de uma grave doença. Dizia ter vivido durante anos numa rotina quase insuportável, trabalhando sem férias em jornadas integrais e que isto havia desgastado gravemente seu organismo a ponto de tirar-lhe a saúde. Mas, além de se mostrar preocupado com seu estado e restrições, ressaltava seu momento de transformação interior. Em suas linhas dizia de novos costumes, como passear de manhã pelo parque da universidade e descobrir a beleza e a suavidade do local. Dizia que nunca havia percebido a quantidade de pássaros, pequenos animais, a beleza das árvores e plantas, além das pessoas que por ali passavam. Aquele professor, muito mais do que temer sua finitude, asseverada pela seriedade da saúde, transparecia o prazer da descoberta de um novo mundo, mágico, agradável e intenso, que conviveu com ele por tanto tempo, mas sem ser notado. Seu testemunho alertava para a descoberta de uma vida essencial, ligada às reais razões da existência, onde mora a emoção e a alegria de viver e respirar, de sentir-se gente, integrado a tudo que compõe a felicidade.

É certo que aquele depoimento serviu de alerta para todos que o leram, em especial a quem já se via ultrapassando os limites do equilíbrio entre ganhar a vida e, de fato, viver. Ainda hoje, este relato nos faz pensar sobre a essencialidade, ou seja, as coisas e hábitos que levam, de fato, às ultimas razões do existir. Por outro lado, nos faz conjecturar sobre o porquê das pessoas se afligem tanto, no acúmulo descontrolado de tarefas, compromissos e responsabilidades, sem respeito aos limites do corpo, da emoção, numa correria desenfreada em direção a morte.

É claro que a modernidade trouxe um ritmo intenso de trabalho e, diferentemente de tempos passados, precisamos apresentar resultados, cumprir metas e inovar a cada momento. É evidente também, que a máxima do “Deus ajuda quem cedo madruga” se tornou um lema para nossa geração, que tem se destacado por conquistas em todas as áreas. No entanto, não podemos nos esquecer de viver e, para isso, nem sempre é preciso andar todas as manhãs pelos parques da cidade, basta deixar que a vida venha conosco para os desafios do dia a dia, mesmo quando eles forem sofríveis e nos exigirem saber dosar a dor em cada sofrimento, o desespero em cada aflição, a preocupação em cada problema. Cristo quis dizer isto ao advertir que “Porque a vida é mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes”[1].

Ao contrário do que possa parecer, Jesus não está incentivando a falta de comprometimento ou o descaso, mas alertando para que a roda viva da vida não nos leve à loucura e à morte. Ele quer nos ensinar que nada é mais importante do que a própria vida, do que a felicidade e o prazer de encontrar pessoas queridas e amá-las. Não há receitas, cada pessoa sabe bem qual o seu limite, onde mora sua felicidade e sua tristeza.

Quem sabe a vida não seja mais leve e mais fácil do que a tornamos. Como diz a poeta, de vez em quando, “basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove”[2].

 Rev. Nilson

 [1] Lucas 12.23.   [2] “Não sei” – Cora Coralina

Published in: on outubro 8, 2012 at 12:16 pm  Deixe um comentário